LITERATURA PARA DOIDOS #01 — O TRAPALHÃO NA ARCA DE NOÉ, DE RENATO ARAGÃO

literaturaparadoidos
20 min readDec 28, 2020

1. INTRODUÇÃO

O filme O Trapalhão na Arca de Noé (1983) é uma produção que já nascera periclitante e o passar de mais de três décadas parece confirmar a sua condição de datado sem merecer qualquer justiça. Rodado durante uma briga entre o famoso quarteto d’Os Trapalhões, em que Dedé, Mussum e Zacarias se aventurariam a fazer outro filme, Atrapalhando a Suate, restou à Renato “Didi” Aragão fazer este filme solo que é considerado como se fosse do grupo. Nem mesmo a violenta concorrência de Star Wars — O Retorno de Jedi atenuou a coragem (ou a falta de noção) para o ator, empresário e advogado de Sobral de lançar nos cinemas brasileiros em dezembro do seu ano de lançamento.

Jornal do Brasil, 11/12/1983. O parágrafo enfeita tanto um filme que exemplifica a idiossincrasia do cinema nacional da quantidade de público não corresponder com a qualidade do filme.

Quanto à análise do filme em si, deixo à cargo do parceiro Debandalarga, que tratou de forma bem-humorada desta insigne película na 28ª edição de sua série de análises Reviewtado[1]. O que aqui vamos atentar é para a análise do livro do filme (!), que, junto com o tradicional LP, foi um objeto de merchandising (ou melhor ao contexto, jabá) para ser associado ao filme. Segundo a edição de 11/12/1983 do Jornal do Brasil, o livro seria escrito pelo jornalista Chico Júnior, mas que consta como Coordenador Editorial na ficha de catalogação, e na capa do livro consta no nome de Renato Aragão como o autor, lançado pela editora Rocco em 1983. Sobre ele não encontrei dados precisos (o nome também não ajuda muito…), mas aparentemente trata-se de um jornalista que hoje cuida da área de gastronomia[2]

Para o príncipe da condessa (correção do Seu Madruga: princípio de conversa), a Arca no título pode divergir de significado, mas a homonímia é intencional para remeter a Os Caçadores da Arca Perdida (1981), que entornaria o caldo de referências tortas d’Os Trapalhões para a concepção dos filmes. Mas, diferente do primeiro filme do Indiana Jones, “Didiana Jabanes” não iria atrás do objeto-título, mas sim convocado pessoalmente pelo proprietário do mesmo para repetir a função a qual tamanho veículo foi designado — ou seja, preservar a espécie animal, ato tão nobre resumido na procura de uma criatura grafada no livro como Papangu, que este sim, é o mcguffin da trama de Renato Aragão.

Quanto à ilustração de capa do livro (que nada mais é que a reprodução do pôster do filme) alguns podem alegar economia de reprodução de direitos de imagem, outros podem invocar a maledicente fama que a internet atribuiu à Renato Aragão sobre o excessivo protagonismo que ele impera a si nas produções que participa. Mas a verdade é que, comparado com a dita imagem em outros produtos, só ele aparece — nada de Sérgio Mallandro, Gracindo Jr, Nádia Lippi, Fábio Villa Verde (a criança sidekick do Didi, para lembrar que é uma estória infantil), e dos vilões liderados pelo personagem interpretado por Milton Moraes. O que não quer dizer muita coisa, mas, como vocês observarão, um desses teve seu personagem suprimido do livro…

Na ordem, a capa do livro e a imagem que serviu de poster do filme.

Sobre as mais de dez ilustrações internas, elas foram feitas por Carlos Jorge Guidacci da Silveira, ou simplesmente Guidacci, cartunista que teve participação no histórico Pasquim e que, pelo que pesquisei, está mais ativo atualmente em sua página no Facebook[3]. Obviamente, uma tentativa do Renato Aragão alinhar que o espectador do seu filme fosse o mesmo público (infantil, ou até ao infanto-juvenil) do leitor do livro. Com 27 páginas (sendo 11 exclusivas de desenhos), já dá até para imaginar como um filme de uma hora e meia foi condensado em quinze páginas de A5 — ainda levando em conta o aproveitamento do máximo substancial da história, coisa que a obra matriz conseguiu arrastar para chegar ao tempo médio de película comercial.

Para quem diz que o “Dr.” Renato é narcisista, aqui o nome do vilão aparece o dobro de vezes em relação ao nome do vilão, que, aliás, é enfatizado ironicamente como um doutor…

Destaque para a contracapa: um resumo tão mais sucinto que serve tanto para o filme quanto para o próprio livro. Noé é tratado como “aquele da Arca”, como se não pudesse ser mais esclarecedor dizendo que se refere ao que é retratado na Bíblia Sagrada, talvez para não afugentar os espectadores que seguissem alguma crença diversa que não fosse as de matriz judaica ou cristã (ironia em negrito). Acho cômico dizer também que o trapalhão Duda (o nome do personagem do Renato Aragão no filme que, assim como o Reviewtado, para efeitos didáticos, também vou chama-lo de Didi) “acaba com a folga do Dr. Morel”, como se ele fosse folgado nível dos atores de pegadinha do João Kléber assim descritos pelo Gerador de Caracteres durante a exibição deste recurso televisivo aperfeiçoado por um dos atores do filme — cujo personagem foi no livro… vocês verão.

Disto isto tudo, com o escancarar que é “a história do filme em livro”, esta análise será feita em observância dos pontos que foram alterados ou suprimidos na transcrição para uma obra de literatura, e ver se se satisfaz bem como literatura pré-adolescente em si.

2. DA INTRODUÇÃO DOS MOCINHOS E DO VILÃO

A pirâmide de luz que inicia o livro aparentemente é usada como “marcador de capítulos” da obra. Que sejamos guiados pela luz para adentrar esta obra…

A tradicional palestra inicial do cinema brasileiro se confunde com a velha rixa entre o que é melhor: filme ou livro. No filme, a hipótese de os fenícios habitarem o Brasil é descrita precisamente como anotada em “Maio de 1928”, enquanto que no livro ocorreu “há mais de 30 anos”. O professor no livro é australiano, e não austríaco, e é apenas de história, e não também de filologia. Não que tais fatos sejam vitais para qualquer uma das narrativas, mas essas divergências gritantes logo de cara prenunciam os desencontros do desenvolvimento do produto até na composição do cânone do mesmo.

O próprio nome do professor até faz mais sentido em ser austríaco como no filme do que australiano. Mas se houve até essa desatenção em confundir Áustria com Austrália, começamos bem…

Todavia, o livro se esforça para contextualizar melhor, dizendo quem são os fenícios, argumentando que as carrancas do São Francisco… não! Perdão! Rio São Francisco, como diria Alípio Martins, seria uma prova. No filme, o roteiro é de Doc Comparato e Aguinaldo Silva, e a versão final ficou à cargo de Paulo Aragão, Vitor Lustosa e Antonio Rangel. À Renato Aragão foi atribuído o argumento, o que permite deduzir que este livro que temos em mãos é uma versão em prosa do que o portador da persona do Didi ao menos rascunhou como premissa para a película… vamos guardar isso e ver se precisamos retornar mais tarde.

Marcos, o arqueólogo brasileiro que quer comprovar a presença dos fenícios, no filme interpretado pelo Gracindo Júnior, realiza, segundo o livro, a pesquisa “por conta própria”, mas logo em seguida vemos que contava com o acompanhamento muito efusivo da equipe da “Revista Ecológica”, especialmente na figura de Carla (Nádia Lippi no filme), a fotógrafa que tem alguma relação bem íntima com ele — isso é o que permite supor, nada disso é oferecido com mais clareza nem na sexta, e nem na sétima arte da mesma história. Ou seja, o livro tentou se preocupar em esclarecer o mote da história, mas acabou igualmente omitindo substanciais vestígios da origem dos personagens que somos obrigados a acompanhar pela narrativa inteira.

O malvadão, claro, é o Dr. Morel, dono da tal “Revista Ecológica”, que não se fez de rogado e dispôs para si um helicóptero para acompanhar pessoalmente a expedição. No filme, o vilão chega em um barco maior, o que talvez ressalta algum traço de megalomania que a literatura possa trazer (ou a falta de verba para realizar a cena de modo satisfatório na gravação). Sendo generoso, Morel pode até ter alguma associação com o Dr. Moreau do H. G. Wells que ganhava a vida explorando, de certa forma, o tema da “animalidade”, embora talvez a referência mais familiar possível seja a d’O Caso Morel (1983), de Rubem Fonseca, em que um escritor que usa o pseudônimo Paul Morel (outra referência literária, de D. H. Lawrence) é um pervertido envolvido em um assassinato de uma mulher, em uma trama que, assim como permeia toda a obra do Rufo, explora o lado mais animal das pessoas. De toda forma, não faltou referências para bicho na criação deste texto.

Na página seguinte, com uma ilustração que mal tenta disfarçar que é a Nádia Lippi, não há o mínimo de suspense em dizer que o Dr. Morel é o vilão e, ao descer “de forma ameaçadora” quase a atingir o barco de Carla. Com um megafone, anuncia “aos diabos com suas desculpas!” para a própria funcionária, que aqui alega ter perdido a câmera no rio, e comparado com o filme soa menos gratuito, já que no filme o malvado-mor dá esporro apenas por ela não ter submergido junto com Marcos. E ainda há uma sequência exclusiva do livro em que o arqueólogo estava para se afogar pelo quebrar do seu equipamento de respiração, e que a fotógrafa chega em tempo para salvá-lo. É um momento que poderia contribuir para melhorar a aproximação dos personagens no filme, mas aqui é descrito tão rapidamente que é fácil passar batido e não assimilar.

Marcos encontra uma câmara, em que pega um mapa antigo e uma pirâmide que emite luz se movimenta sozinha… mas no filme é abstraída desse poder autônomo. Tão voltam à superfície, o arqueólogo é capturado pelo Dr. Morel que, ao tentar pegar a pirâmide, vê Marcos jogá-la no rio, enquanto que dois homens-sapos, imediatamente, pegam o objeto e levam para as profundezas. Pelo menos na realização cinematográfica isso foi abstraído, talvez por já bastar a pretensa tosqueira chupinhada de Godzilla que o papangu já trazia para a produção, ficando subentendido que caiu e sumiu ou, forçando ainda, que os jacarés levaram embora, já que nenhum dos capangas se atreveu a entrar no rio para pegar de volta.

Soando ranzinza e óbvio, a apresentação dos personagens aqui é bem superficial. Se Marcos trabalhava autonomamente, como permitiria juntar forças com o dono de uma revista altamente suspeito, que dispõe de grande efetivo para cercear a expedição? Qual o contexto de uma intimidade que possui com Carla para ela ser tão próxima assim? E como esta possui sangue de barata para trabalhar com um sujeito que se dispõe de jagunços e autoritarismo no modo de agir? São algumas questões que me fiz que nem mesmo o filme oferece subsídios para tentar responder, e que certamente a pressa do livro em ser curto não teve o menor intuito para ajudar.

3. DA INTRODUÇÃO DE DUDA — OU MELHOR, DIDI

Já que houve tantas discrepâncias em relação ao filme logo no começo (mesmo que não fizessem diferença), tinha mesmo que manter o nome tão complicado do professor australiano (ou austríaco)?

Enfim, somos introduzidos à Duda, que, para os ditos efeitos didáticos, o chamaremos de Didi. Gasta-se um longo parágrafo dizendo que nada tinha a ver com Marcos, Carla, Morel, tesouros fenícios, mas sim em catar cocô de rinoceronte no Jardim Zoológico. Didi é descrito como “simples, ingênuo, puro”, que “carrega muito amor no coração”, mas adora “se meter em trapalhadas”. Talvez tenha o personagem o que faltou na conturbada situação que resultou na temporária cisão d’Os Trapalhões. E assim toda a sequência da apresentação do Didi até a rinha de galo, que corresponde a 25% do filme (20 minutos), é resumida em meia página para, enfim, colocar o personagem principal (ou pelo menos tentar) ao que se propõe o título e precisamente toda a história.

E encetam-se alguns problemas. Zeca, sidekick do Didi, não é colocado em momento algum do livro como uma criança. O que faz ao menos supor isso são as ilustrações de Guidacci, mas que ainda assim só é possível fazer de forma clara a associação quem viu o filme. Dessa forma, fica até difícil ver a ilustração e dizer que o personagem Duda é a representação escandalosa da cara do Didi — costume, aliás, d’Os Trapalhões terem outros nomes em alguns filmes que chega a ser irritante quando são significantemente diferentes dos seus personagens habituais. Em tempo, apesar de não estar no livro: que coisa suspeita um homem velho e simplório zelador de jardim zoológico envolver uma criança em confusões do naipe de contra proprietários de rinha de galo… como bem disse o Reviewtado em sua análise: deveria ser passível de cassação de embaixador da Unicef o titular do personagem Didi Mócó.

Aliás, no livro nem explica como Didi e Zeca se envolveram em uma confusão com os donos de uma rinha de galo. Tudo bem, no filme mostra que Zeca estava cuidando de um galo ferido e decidem ir até o local para “atazanar” geral. Mas essas lacunas trazem a impressão de que o livro atua, e vice-versa, como complemento do filme, ou que é necessária a ciência dos dois para se ter ideia do produto total da história. Tudo bem, talvez o espectador infantil do filme não irá exigir muitas respostas, mas o texto do livro apresenta descrições de determinadas coisas de forma um pouco mais prolongada que não parece ser destinada ao mesmo público que foi ao cinema.

De certa forma, até que essa sequência no filme serve para fomentar um potencial espírito de ação e aventura dos personagens — embora que, novamente mencionando o Reviewtado, teria sido melhor se tivessem comunicado a polícia, ou isso nunca teria acontecido. Seria uma apresentação bem aceitável, ao contrário dos personagens Marcos, Carla e Morel, que praticamente não possuem nenhuma. A cereja do bolo da cena — um castigo irônico em que os donos da rinha, emplumados, brigam no centro para uma plateia de penosos — permite aduzir muito mais qualidades do personagem definitivamente marcado para resolver todos os problemas da narrativa.

Por fim, nada de Sérgio Mallandro, ou melhor, Kiko: seu personagem não existe no livro, o que faz pensar que, se o livro é o argumento do Renato Aragão, não estava previsto, e foi inserido no filme para tentar viabilizar maior apelo infantil. Alguns detratores podem alegar se tratar do desejo de maior protagonismo do portador da OAB/CE 1016, mas a participação do Mallandro do filme é tão pequena que se limita apenas para aprontar na rinha e na batalha final — profetizando uma situação que vivenciara no próprio filme O Inspetor Faustão e o Mallandro (1991), quando conflitos na agenda o impedira até de contracenar com o próprio apresentador do Domingão.

Dividir a análise do casal de mocinhos e o vilão em um tópico e o Didi em outro de forma não intencional me fez perceber como este personagem é construído de forma a aparentar ser acima do mal e do bem, apesar de a todo momento ser mostrado que penda para este do que aquele. A pobreza de personagens potencialmente fortes para um filme do tipo em relação ao dele continua no livro, com a agravante sensação de que o dono do produto é bem melhor recompensado pelo tão pouco que faz, do que fez ou do que aparentemente merecia receber.

4. O ENCONTRO COM “AQUELE DA ARCA”

Se ao final da perseguição de carros Didi e Zeca caem no rio e estranhamente nadam cada vez mais fundo sem explicação no filme, no livro já retomam os homens-sapos que os coagem adentrar num mundo subterrâneo. O local assim é descrito:

A caverna, que ficava numa grande montanha, se estreita, transformando-se em um túnel, por onde os nossos heróis chegam a um lugar muito bonito: um bosque cheio de flores, pedras, árvores plenas de luzes de todas as cores e um laguinho de águas transparentes e espelhadas, habitado por lindos peixes coloridos.

No filme, talvez para economia de cenário, ficou apenas na caverna mesmo, com a ilustração de Guidacci representando mais a película do que o que é descrito na obra literária. O que indica que deve ter trabalhado com base no material promocional do filme em andamento de produção, confiando no Dr. Renato que pelo menos o que é canônico em uma versão se manteria na outra.

A ilustração é tão escancarada que é o Didi que soa um sacrilégio seu personagem se chamar Duda. E essa ilustração cavernosa misturando preto e azul escuro mostra-se longe da bucólica cena que diverge do filme.

A apresentação de Noé é tão esdrúxula quanto a do filme, em que aqui é feita pelo narrador, e não moldada a partir da suposição do personagem do Didi. Não teria sido bem mais simples se essa apresentação fosse inserida da boca do próprio personagem que está no título do filme? Até mesmo o “Nãoé” do filme Macho, Fêmea e Cia (1986) tinha uma apresentação de si mesmo muito mais convincente, com seu nome escrito à carvão no seu peito, visivelmente, mesmo que peludo. Fica difícil acreditar que nomes como Aguinaldo Silva e Doc Comparato participaram do processo do roteiro do filme para que isso sequer fosse consertado em pelo menos um produto em relação à história.

Estas falas são exatamente as mesmas ditas no filme, quase que palavra por palavra — uma das poucas fidelizações presentes no cânone d’O Trapalhão na Arca de Noé.

O mero apodo que resume o personagem — “aquele da Arca” — soa tão pretensioso que parece bem com o que o Reviewtado disse na análise do filme: da resposta para essa explicação ter sido simplesmente tomada porque está no título e ponto final. Aliás, até parece que há um esforço hercúleo para que não seja dito imediatamente que a origem do personagem é do Gênesis judaico — mesmo que, em um momento no filme em que Didi, do alto de uma árvore, se diz cristão. É o mesmo que imaginar Os Caçadores da Arca Perdida sem nenhuma referência judaica para ao menos supor metaforicamente a oposição com os nazistas. Fora também que a missão de Noé não é propriamente por devoção e amor aos animais, e sim porque Deus estava revoltado com a humanidade e resolveu inundar tudo, assim pedindo um casal de cada espécie para a preservação, sem nenhuma lição ecológica no meio que o Dr. Didi quis subverter em sua realização.

Também diferente do primeiro filme do Indiana Jones referenciado para a composição deste, aqui há uma salada de frutas para construir a mitologia que os personagens do filme perseguem que faz destroçar a base pretensiosamente séria que se pretendeu no começo. São fenícios, que tem algo a ver com uma pirâmide de luz, que esta tem algo a ver com Noé e sua sina de entidade superior a designar, no caso, a proteção de uma espécie de dinossauro ainda vivo. Talvez Noé não tivesse passado tanta vergonha assim desde a repulsa que seu filho Cam teve pela sua nudez bíblica.

Prontamente, Noé “mostra cenas” — que no filme melhor se apresenta na forma de imagens exibidas pela água — de Carla fotografando Dr. Morel todo orgulhoso com a pele extraída de um jacaré para contrabando. Mas espere aí: como o dono de uma “Revista Ecológica” de fachada envolvido em crime ambiental se presta a este tipo de registro? E mesmo que fosse para o envio de fotos aos possíveis compradores, tinha mesmo que o bandidão fazer pose para aparecer? Ah, sim. É para ignorar alguma lógica de maldade do personagem (se bem que nada aqui tem lógica) e endossar o quanto ele é malvado, conforme os parágrafos seguintes:

Dr. Morel era um sujeito muito mau. Na verdade, era um contrabandista de pele, um “coureiro”, que agia ali no Pantanal.

[…]

Ele sabia muito bem que, matando os bichos do jeito que matava, estava comentendo um crime contra a natureza, um crime contra o meio ambiente, um crime contra a ecologia. Ele sabia de tudo isso, mas nem se importava. O que ele queria mesmo era ganhar dinheiro com a matança dos animais.

Trata-se de um esforço tão desgraçado para dizer que o personagem é “do mal” que fica à cargo do próprio narrador enfatizar isso, longe de limitar-se à descrição dos fatos e trazer por meio destes elementos que fomentem as considerações do leitor sobre o personagem. Ainda mais como se trata de um livro em que este discurso não é intencional, se trata de um “bife” tão escandaloso de expositivo que, em um livro pretensamente escrito para o público de pré-adolescente para baixo, ainda assim é de subestimar a inteligência e de perder espaço dentro da paginação — se havia a preocupação em fazer um livro realmente curto.

Esse diálogo com um “pssit” serve para lembrar que o personagem é o Didi, embora o narrador diz que quem pergunta é o “Duda”. Nem Fernando Pessoa se confundia assim com seus heterônimos.

Pelo menos o livro se presta em anunciar que cabe ao Didi proteger o Papangu, e não encontra-lo sem ao menos saber o seu nome — embora em ambas as situações não há sequer uma descrição superficial de como é o bicho, a não ser que se olhe para o cartaz do filme para saber o que é. E aqui novamente aparecem os homens-sapos, que continuamos sem saber como Noé conseguiu tê-los como seus asseclas — deve ser parte de algum espólio referente às dez pragas do Egito que acordou em tomar parte de seu colega Moisés. Eles entregam à Didi e a Zeca a bendita pirâmide com mais facilidade do que Marcos teve para consegui-la, o que só comprova que anos de estudo não serve para você ser merecedor de artefatos mágicos, e sim o atestado do narrador de que você é o arauto da bondade.

Com exceção do trecho sobre o Papangu, os dois diálogos são exatamente reproduzidos quase que fielmente pelo personagem do Noé no filme. E esse bendito trecho do Papangu por si só poderia resolver vários problemas que afetam a continuidade da produção que foi levada ao ecrã.
Olhem a cara desse Didi impressionadíssimo com a pirâmide de luz.

5. UNIÃO DE FORÇAS NO PANTANAL

Didi e Zeca são teletransportados para o Pantanal, e se perde no livro uma piadinha boba de referência direta quando Didi diz que estão “no mato sem cachorro”, quando no filme diz “na boca do jacaré”, em referência ao bicho que sai do mesmo lago que eles e assim fogem. Em seguida, a cena em que Carla recorre a diálogos expositivos para falar que o Dr. Morel é um vilão, mas subtrai a parte em que ele quer que ela use seu charme para convencer Marcos a dizer sobre o mapa — talvez nem precisou, pois o cara é tão malvado mesmo que, logo em seguida, Marcos diz a Carla que não irá falar nada sobre o mapa, pois se falar, morre. O sujeito é tão cruel que faz com que os mocinhos já antecipem os seus movimentos.

Carla foge em um monomotor que é visto por Didi e Zeca do alto de uma árvore — estavam lá dormindo, coisa que o livro explica e no filme não, pois já aparecem na copa dos galhos secos. Forçando sentido, devem ser para fugir dos jacarés. E mais em um encontro de casualidade forçada, chegam na civilização em um hotel, o mesmo em que a mocinha chega. E o Didi aqui é bem mais esperto, atinando que é a fotógrafa que viram nas visões fornecidas pelo Noé — bem menos rasteiro na tentativa do típico deboche de quebra da quarta parede que o Didi costuma fazer, quando diz no filme “é ela, não sei, mas é ela”.

Ainda em ponto positivo para o livro, há uma descrição rápida, porém melhor que a do filme sobre como Didi conhece Carla para que, em seguida, tomem um avião para saltarem de paraquedas próximo à base dos vilões. E também há o encontro do nosso herói com o Papangu, que não come angu, e sim melancias. Nem com o personagem principal do filme Um Pistoleiro Chamado Papaco (1986) houve uma diferença tão gritante na concepção do nome do personagem e no que ele faz realmente na prática. Contudo, pelo filme é possível supor que se trata do referido bicho, já que aqui não traz elementos para sabermos que é o Papangu neste momento.

Neste ínterim de desapego de umas coisas de uma interpretação e outra da história, o Dr. Morel no livro realmente desencanou do tal mapa, enquanto que no filme ele rasga o documento histórico, afirmando que é falso — e novamente citando o Reviewtado: quem diabos plantou um mapa falso dentro da câmara fenícia para fins de pegadinha? De qualquer forma, em ambas as obras, neste ponto da história, que anuncia que de fato o Papangu gosta de comer melancias (confirmando que o Didi realmente teve contato imediato com o bicho no resumo do parágrafo anterior) e que usariam o fruto, injetado com cachaça, como isca para capturá-lo.

Aliás, essa mudança de foco do vilão só para acompanhar o desarranjado esquema da história só mostram os inúmeros problemas que a salada de frutas com Indiana Jones e Bíblia que o Dr. Didi fez. O que tem a ver os fenícios, Noé e o Papangu (até parece aquelas piadas que sempre envolvem três elementos…)? A transição entre tais elementos-chave na trama é feita de forma tão superficial que tem que contar muito com a boa vontade do espectador/leitor para encaixá-los. E fica o vilão sendo apenas como um cara malvado mesmo, que não importa que o que é perseguido no filme se altere drasticamente: ele estará lá para conquistar primeiro do que os heróis, mesmo que seja repentina e sem explicação a sua ciência sobre o que agora ele quer, porque ele é do mal e deve ter primeiro do que o lado do bem.

Em resumo, segue-se como os momentos finais do filme de modo geral: o trio liberta Marcos, passa a noite na floresta; encontram o Papangu, são capturados pelo Dr. Morel, surge o pai do Papangu que destrói a base dos vilões. Didi, por não ter feito nada, é premiado, sendo arrebatado pela arca de pirâmide invertida tecnológica de Noé, fazendo par com a Xuxa e fim.

Segura o tchan, amarra o tchan, segura o tchan, tchan, tchan, tchan, tchan: o Papacu… ops, o Papangu chegou!
O Odorico Paraguaçu Jr. impressionado com esse dinossauro azul de cara chapada sendo montado pelo Didi Mócó em skin de Odlaw do “Onde Está Wally?”
Acho que agora que lembraram que o livro era infantil para mais ao final ter descrições narrativas propriamente infantis, com o “maluquim, maluquim” do Didi; o “papanguzinho” e o “papagunzão”, e “o zão era o pai do zinho” — imagine se tivesse Papacuzão e Papacuzinho no filme do Mário Vaz Filho… e esse PUM da explosão que é feita por Carla e Zeca, e não pelo Kiko Mallandro como no filme.
Como não poderia deixar de ser, o cearense lascado é premiado com a loira gaúcha, em uma clara denúncia e realização de justiça social da xenofobia contra os nordestinos, enfim vitoriosos pela conquista do Didi.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Terminada a leitura, fiquei com dúvidas se a versão literária de O Trapalhão na Arca de Noé é realmente um livro infantil, infanto-juvenil ou de algum gênero pré-existente que possa ser nomeado. Não acho que possa ser infantil, porque há muita delongar na utilização do texto, com o uso de diversas expressões que, mesmo advindas do filme, seria bem difícil para quem está aprendendo a ler assimilar e entender o que está escrito como alguém entende o que vê no filme. Por outro lado, o texto em si conta a história que já é atropelada demais para quem já sabe ler e busca uma literatura de entretenimento competente à sua idade.

Dado ser vendido na contracapa como “o livro do filme”, O Trapalhão na Arca de Noé transita entre guia de leitura (como um programa de cabaret), resumo ilustrado e souvenir de um projeto oriundo de um contexto extremamente problemático. Talvez se pretendeu como uma lembrança possível de ter o filme em mãos em uma época em que para rever mesmo o filme — se alguém realmente tinha essa curiosidade não-ironicamente — somente em matinês de reprises ou com o VHS ainda em seus primeiros anos de popularidade no Brasil. Na verdade, talvez pelo sucesso assegurado que todo filme do grupo tinha (mesmo neste caso feito só com um integrante dele) e que neste caso não se fez de diferente, se já era questionável a qualidade da narrativa do filme em si e parecia não ter muito interesse pelo aprumo aqui, soou natural a repetição com a adaptação impressa.

Tá certo que Renato Aragão não queria competir com Fernanda Lopes de Almeida (A Curiosidade Premiada), Lygia Bojunga (A Bolsa Amarela), Pedro Bandeira (Toda a Série d’Os Karas), Ruth Rocha (Marcelo, Marmelo, Martelo), Ziraldo (O Menino Maluquinho), dentre outros fenômenos da literatura pré-adolescente dos anos 1970 a 1980, mas o desleixo que o titular do Didi Mócó teve — devido a ser um fenômeno que nunca dizia o contrário na época, pelo constante sucesso e pelo muito dinheiro que entrava — acabou por gerar um produto de entretenimento que hoje cada vez mais afunda no esquecimento por ser datado (como as situações que envolviam a cor de pele do Mussum), malcuidado (como os próprios filmes do grupo, em especial do que aqui se tanto falou, em que carrega um excesso de colorização amarelada parecendo o Dark World de The Legend of Zelda: a Link to the past) e que se resta alguma curiosidade são em torno das polêmicas pessoais (como das relações de trabalho do grupo; da vida pessoal de Renato Aragão sobre o seu tratamento para com as pessoas; e sobre a sexualidade de Mauro Faccio Gonçalves, o Zacarias).

Aparentemente, esta foi a única empreitada do tipo realizada em relação a todos os outros filmes d’Os Trapalhões. Renato Aragão lançaria, 21 anos depois, Amizade sem Fim (2004), um romance pretensamente sério e que ainda não o tenho em mãos, para comprovar se duas décadas foram o suficiente para acertar os ponteiros em relação às suas investidas na literatura. Caso adquire este exemplar, será devidamente analisado em alguma próxima edição desta série de Literatura para Doidos. Quanto ao livro O Trapalhão na Arca de Noé, restará continuar no canto obscuro da série Literatura Brasileira — um lugar taciturno que igualmente se caminha a história d’Os Trapalhões na ampla área do entretenimento, pelo mau tratamento não só na conservação, mas também na elaboração de produtos como esse.

[1] https://www.youtube.com/watch?v=ysf40Iv0QVo

[2] https://chefsnafeira.com/2018/08/22/chico-junior-e-conhecido-por-grandes-atuacoes-na-gastronomia-e-na-comunicacao/

[3] https://www.facebook.com/humorguidacci/

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